O
secretário-geral da ONU manifestou-se dia 3 de março, para dizer que
havia recebido “notícias sombrias” de que as forças do governo sírio
estariam executando arbitrariamente, prendendo e torturando pessoas em
Homs, depois de terem retomado o controle, no distrito de Baba Amr.
Acreditará realmente no que disse?
“Uma
das bifurcações que definirão o futuro será o conflito entre os
senhores da informação e as vítimas da informação”, escreveu o
funcionário dos EUA encarregado pelo vice-chefe da inteligência de
definir o futuro da guerra, no Quarterly do War College dos EUA, em 1997.
“... porque nós já somos os senhores da guerra de informação”
“Mas
não temam”, escreveu adiante, no mesmo artigo, “porque nós já somos os
senhores da guerra de informação (...) Hollywood está “preparando o
campo de batalha” (...) A informação destrói os empregos tradicionais e
as culturas tradicionais; ela seduz, trai e, mesmo assim, permanece
invulnerável. Como alguém algum dia conseguiria contra-atacar a máquina
de guerra da informação, que outros giram, apontam e comandam?” [1]
“... escrevendo os roteiros, produzindo os vídeos e recolhendo os royalties”.
“Nossa
sofisticação no uso da máquina de guerra da informação nos capacitará a
deslocar e superar todas as culturas hierárquicas (...). Sociedades
que temem ou não conseguem administrar o fluxo de informação não podem,
simplesmente, ser competitivas. Conseguirão dominar as tecnologias
para assistir aos vídeos, mas nós estaremos escrevendo os roteiros,
produzindo os vídeos e recolhendo os royalties. Nossa criatividade é
devastadora.”
A
guerra de informação não estará contida na geopolítica, o autor
sugere, mas será “disseminada” – como qualquer drama de Hollywood –
mediante emoções nuas. “Ódio, ciúme e ganância – emoções, mais que estratégias – definirão os termos das lutas na guerra de informação.”
Não
só o exército dos EUA, mas ao que parece toda a grande mídia ocidental
insiste em que a luta na Síria deva ser narrada em imagens emotivas e
declarações moralistas que sempre – como o artigo do War College diz corretamente – triunfam sobre a análise racional.
A
Comissão do Conselho de Direitos Humanos da ONU condena o governo
sírio por prática de crimes contra a humanidade, mas só considera o que
diz a oposição, e sem nada investigar dos “crimes” da oposição: e
imediatamente assesta acusações contra o governo sírio, baseando o
processo em mera “suspeita razoável”. Será que acreditam no que
escreveram, ou dedicam-se só a “redigir o roteiro”? [2]
Já esquecida do que os Marines
dos EUA fizeram a Fallujah em 2004 (6.000 mortos e 60% da cidade
destruída), quando insurgentes armados também buscavam estabelecer ali
um “Emirado” salafista – toda a mídia ocidental em Homs dá voz a gritos
indignados de “algo tem de ser feito” para salvar o povo de Homs de “um
massacre”. A questão de a que finalidade exatamente aquele “algo” –
seja intervenção militar ou entregar armamento pesado aos insurgentes –
deveria servir, e a que consequências pode levar, desaparece
completamente de vista. Os que cometam a temeridade de se interpor no
caminho dessa “narrativa”, argumentando que qualquer intervenção
externa será desastrosa, são imediata e completamente condenados como
cúmplices dos crimes do presidente Assad contra a humanidade.
O mau jornalismo do “falamos diretamente da Síria”
Essa escola de jornalismo – o Guardian e Channel Four
são bons exemplos dessa reportagem em tons de “falamos diretamente do
local” – que dá ênfase ao repórter como participante e, de fato, também
como co-sofredor entre os atacados, dos indizíveis sofrimentos
emocionais da guerra, usa imagens emocionais precisamente para
sublinhar aquele mesmo “algo tem de ser feito imediatamente, na Síria”.
Ao
reproduzir imagens de corpos mutilados e mulheres em prantos, todos
dizem e determinam que o conflito tem de ser visto como evento
moralmente simplíssimo – um caso de agressores e vítimas.
“De
Baba Amr. Revoltante. Não posso entender como o mundo suporta isso. Vi
um bebê morrer hoje. Estilhaços: os médicos nada puderam fazer. O
peitinho subia e descia, até que parou. Senti-me impotente.” [3]
Os
que argumentam que qualquer interferência ocidental só exacerbará a
crise, são confrontados com a irrespondível evidência de bebês mortos –
literalmente. Como o artigo do War College diz tão claramente:
como alguém conseguiria contra-argumentar nesse tipo de “guerra de
informação” desfechada contra o governo sírio, que está no polo receptor
dos que “escrevem os roteiros, produzem os vídeos e recolhem os royalties”?
Eu
também vi cenas terríveis no Afeganistão nos anos 1980s: claro que
criam um abismo emocional pelo qual o espectador desarmado desliza; mas
será que esses jornalistas e repórteres convertidos em ‘cruzados’
sabem que os inocentes e as crianças nem sempre são as únicas vítimas
dos conflitos? Será que acreditam mesmo que o próprio sofrimento
pessoal dos jornalistas e repórteres é tão essencialmente “correto”,
“perfeito”, “ético”, que justificaria condenar ao silêncio, não
comentar, fingir que não há todas as complexidades e todas as outras
possibilidades e interpretações? Mas... como, afinal, mais guerra
poderia, algum dia, ser resposta à terrível morte de uma criança?
Esse
ardor emocional reducionista do jornalismo não passa de forma
clandestina de propaganda – que em nada difere de “guerreiros” da
informação como AVAAZ, que ajudam a escrever e produzir muitos desses
vídeos da infoguerra. [4]
Apesar
de ninguém endossar abertamente esse “jornalismo de imersão”, não
parece haver dúvidas de que essa abordagem triunfou em inúmeras
redações de jornais e televisões. E a coisa parece ainda pior que isso:
cada dia mais se veem diplomatas ocidentais agindo como se fossem
“ativistas” e participantes de lutas internas nos estados aos quais são
mandados e dos quais fala o tal “jornalismo de imersão”. Mas... que
tipo de informação, afinal, estão construindo, para começar, para seus
próprios governos?
Sabe-se
que a oposição armada, que levou a Homs os jornalistas ocidentais – e
depois insistiu em evacuá-los pela rota mais perigosa, via o Líbano, em
vez de aceitar os serviços do Crescente Vermelho, decisão que custou
muitas vidas – foi motivada por interesses políticos. Mas e os
jornalistas?
Os
jornalistas terão sido motivados pelos mesmos interesses, e divulgaram
e repetiram os mesmos argumentos, sem saber, sem sequer suspeitar, que
os tais corredores humanitários a serem abertos até Homs, impostos do
exterior, não passariam jamais de pretextos para a intervenção? Em
outras palavras, os jornalistas não sabem?!
Será
possível que os jornalistas sequer suspeitem de que são atores, são
partícipes, em outras palavras, são cúmplices, da construção de uma
encenação, a favor de certo tipo de intervenção externa? Alguma solução
à Kosovo fará melhorar alguma coisa na Síria?
O
que mais chamou a atenção em toda essa operação é que, além de essa
“guerra de informação” já ter tido o efeito provável de demonizar para
sempre aos olhos do ocidente o presidente Assad, teve também o efeito
de “desancorar” de lá a política externa dos EUA e da União Europeia.
Tudo na Síria parece passar-se como se EUA e UE não tivessem qualquer
interesse na Síria. Como se estivessem absolutamente distanciadas de
qualquer real conflito geoestratégico naquele país.
O
que, por sua vez, levou a uma situação na qual os líderes europeus e
norte-americanos passaram a comportar-se como se estivessem sendo
“convencidos” – por aquele “jornalismo” lá “imerso”, que só fazia
“revelar” números crescentes de mortos, dia a dia – quase como se
estivessem sendo praticamente “obrigados”, a “fazer alguma coisa”. Como
se estivessem reagindo exclusivamente porque pressionados pelas
“notícias”, ante a necessidade de reagir àquelas explosões emocionais
que se repetiam incansavelmente pela imprensa contra o presidente Assad
e suas “mãos sujas de sangue”.
Na Síria, o ocidente já virou refém de sua própria guerra de (des)informação
Por
tudo isso, em certo sentido, o ocidente acabou por ficar refém de sua
própria guerra de (des)informação: o ocidente fechou-se, ele mesmo,
numa compreensão simplória, preso a um significado “único”: uma espécie
de meme simplificado de vítima-e-agressor, para o qual a única saída
possível seria derrubar o agressor.
A
Europa, por essa via, acabou por afastar-se completamente de todas as
demais opções –, precisamente porque o tema ‘humanitário’, que muitos
supuseram que bastaria para facilmente derrubar Assad, impede hoje que
se analisem quaisquer outras vias, dentre as quais, por exemplo (e
jamais antes sequer considerada!), uma saída negociada para o impasse.
Mas quem, afinal, algum dia realmente acreditou que os objetivos de EUA e europeus na Síria fossem puramente humanitários?
Estaremos
ante a estranha (e perigosa) situação – dado o rumo que vão tomando os
eventos no Oriente Médio – de já ser quase impossível (ou, de talvez,
já ser completamente impossível, porque seria insuperavelmente
ridículo!), para o ocidente, admitir agora, de repente, abertamente...
que a guerra de informação que o próprio criou jamais teve coisa alguma
a ver com reformar ou democratizar a Síria?! Que tudo sempre visou
exclusivamente à “mudança de regime” na Síria, e que esse objetivo já
estava decidido desde antes de o primeiro protesto irromper em Dera'a?
Em recente entrevista a Jeffrey Goldberg da revista Atlantic, [5] que
o presidente Obama concedeu antes do discurso que faria na reunião
anual do AIPAC, Obama foi perguntado, dentre outras questões, sobre a
Síria. Sua resposta foi muito clara:
GOLDBERG: O
senhor pode falar sobre a Síria como questão estratégica? A questão
humanitária, OK, também existe. Mas me parece que um modo para isolar e
enfraquecer ainda mais o Irã é remover Assad, que é o único aliado
árabe que restou ao Irã.
PRESIDENTE OBAMA: Trata-se disso, precisamente.
Será
que algum dos militantes do intervencionismo ocidental e dos seus
jornalistas propagandistas realmente acreditam que o massacre que o
ocidente impôs à Síria seria efeito de luta por democracia e reformas?
Se algum dia acreditaram nisso, podem esquecer. Obama já disse,
claramente: na Síria, “trata-se precisamente” do Irã.
E,
com Europa e EUA cada vez mais postos como coadjuvantes de um frenesi
de que foram tomados os qataris e sauditas, para derrubar a qualquer
preço outro líder árabe, será que esses jornalistas e repórteres
acreditam que aquelas duas monarquias absolutas realmente partilham dos
desejos do jornal Guardian ou da rede Channel Four [6] , que acalentam as mais humanitárias aspirações para o futuro da Síria?
É
acreditável que jornalistas e repórteres realmente creiam que os
insurgentes e mercenários que os estados do Golfo estão financiando e
armando seriam, realmente, bons, pacíficos e bem-intencionados
reformadores, arrastados para a violência pela intransigência de Assad?
É possível que um ou outro realmente acredite nessa fantasia. Mas
quantos, ao “noticiar” aquelas “notícias” como as “noticiam”, só fazem,
de fato, ativamente, minar cada vez mais o mesmo campo de batalha que,
há tempos, estão preparando?
Notas dos tradutores
[3] 27/2/2012, “The danger of reporters becoming ‘crusaders’” [O drama dos repórteres convertidos em “cruzados”].
[4] 3/3/2012, ver “How AVAAZ Is Sponsoring Fake War Propaganda From Síria” [Como AVAAZ está patrocinando guerra de falsa propaganda contra a Síria].
[5] 2 /3/2012, The Atlantic em: “Obama to Iran and Israel: 'As President of the United States, I Don't Bluff'” [Obama a Irã e Israel: ‘Como presidente dos EUA, não blefo’”],
[6] 5/3/2012, em: “Syria’s inconvenient thruth”Fonte: http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=d41d8cd98f00b204e9800998ecf8427e&cod=9447